17.5.15

A arte no admirável mundo de Paraisópolis

Criado em 2013, o tour “Paraisópolis Das Artes” mostra o que a comunidade tem de melhor: uma efervescência cultural de tirar o chapéu


Vista de Paraisópolis da casa do artista Estevão.
Não existem placas de rua. Construções, pequenos negócios, barracos, trabalhadores e pessoas comuns se misturam no centro comercial de Paraisópolis. Lado a lado com os luxuosos arranha-céus do Morumbi, os moradores da comunidade mal parecem se lembrar, no dia a dia, daquela outra realidade. Ao longo prazo, no entanto, as diferenças sociais se tornam óbvias através dos projetos que as empresas de comunicação e o governo criaram para abafar a desoladora desigualdade da região. Grupos de rap do local, como o Crime Fatal, mostram a provação de viver em uma das maiores favelas do estado de São Paulo já em seu primeiro verso: “Paraisópolis, aqui nasci e sobrevivi.”



Sobrevida essa que a comunidade deseja extinguir, aos poucos, do imaginário popular e mostrar que existe, sim, vida em Paraisópolis. Foi pensando nisso que, em 2013, foi criado o Paraisópolis Das Artes, o primeiro tour em uma favela de São Paulo. Ao longo de duas horas, os visitantes embarcam em um passeio pelos principais pontos culturais de uma das maiores comunidades de São Paulo - de acordo com dados oficiais da prefeitura de São Paulo, Paraisópolis conta atualmente com 55.590 habitantes.


Além de prover visibildade aos artistas e projetos culturais locais, o tour tenta mudar a correlação que a sociedade faz de favela com a violência, como explica Francisca Rodrigues, uma das cuidadoras do Paraisópolis Das Artes e do jornal da comunidade, Jornal do Povo.  


O ponto de partida é a Sede da União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis, no coração comercial do bairro da zona sul, onde a produção do Jornal do Povo e da rádio Comunitária Nova Paraisópolis FM  acontecem. Esses veículos fazem um breve panorama geral da comunidade, destacando a história e as iniciativas em curso atualmente.


Berbela mostra uma de suas criações, um violino.
Logo a alguns metros da sede, a nossa jornada começa. Um artista disfarçado de mecânico- ou seria ao contrário?- cria objetos de decoração e até móveis com peças que sobram dos consertos que faz nas motos e bicicletas. Edinaldo da Silva, o Berbela, como é conhecido, começou a criar suas próprias obras quando fez uma bicicleta para seu filho, já que não tinha condições financeiras de comprar uma. A partir daí não parou mais. Ao fundo de sua loja de mecânica, peixes, pássaros, bonecos e até tanques de guerra brigam por um espaço no pequeno depósito onde ele guarda suas inovadoras criações.


Os materiais para suas obras ficam em uma caixa metálica, sua "maior preciosidade", na qual se encontram pregos, molas e outras pequenas sucatas que, sem molde, Berbela vai criando "da sua cabeça". Em apenas dois dias, peças desgastadas e enferrujadas ganham vida e até música em um personalizado violino.


Enquanto algumas engenhocas são feitas para encomenda, outras Berbela faz para si mesmo, como as mesas montadas apenas com pequenas peças de motos, que ele terminantemente se recusa a vender.


Além de Berbela, outro artista chama atenção.
Uma das melhores traduções de toda a efervescência artistica de Paraisopólis é a Casa de Pedra, uma residência decorada no melhor estilo arte nova. O dono, Estevão Conceição, de 56 anos, despretensiosamente traz para a casa objetos que encontra em bazares, para o desgosto de sua esposa Edilene, que entre risadas conta que já não aguenta mais ouvi-lo dizer que vai a um bazar. Apesar disso, ela não deixa de apoiar a arte do marido, que já foi comparada ao trabalho de ninguém mais, ninguém menos que Antoní Gaudi, famoso arquiteto catelão, que Estevão já teve o prazer de conhecer.


A casa, construída em um terreno de 75 metros quadrados, encanta por seus arcos de pedra, corredores e paredes decoradas com objetos diversos, como xícaras, pratos, máquinas de escrever e até telefones celulares. Estevão já passou até por uma cirurgia nas costas por conta do peso das peças que trazia para modelar sua residência.
Primeiro prato que Estevão colocou em sua casa.
No começo, os moradores da comunidade chamavam Estevão de "esquisito". Entretanto, hoje, a entrada da residência já se tornou até ponto de encontro. Todas as tardes, vizinhos e amigos se reúnem na porta do famoso domícilio para ver o rádio embutido - o objeto preferido do público-, ouvir música e "bater papo", como conta Edilene, esposa de Estevão.



Mas, apesar das alegrias, a casa também já rendeu problemas à Estevão. Ele revela que já levou calote de um editor que publicou um livro sobre sua vida. Na época, o autor havia prometido cinco por cento dos lucros para o artista, que nunca viu esse dinheiro chegar ao seu bolso.


A trapaça, no entanto, não foi o suficiente para fazê-lo se desencantar por sua arte. Edilene conta que “muitas pessoas que não precisam mais de objetos vem até o Estevão e pedem para que ele compre delas” e ele sempre as ajuda, mesmo que isso signifique um prejuízo às suas finanças.


E mesmo antes do tour existir, muitas pessoas de diferentes nacionalidades já visitavam a obra de arte que é essa casa. O diferencial é que agora o passeio idealizado pelo presidente da União dos Moradores, Gilson Rodrigues, é responsável por repassar o lucro das visitas para a Sede e os artistas. Para agendar o serviço, cada interessado deve pagar R$150,00, que já atendeu, desde sua criação, 12.000 pessoas. Em média, por dia, dois visitantes percorrem vielas e ruas movimentadas para reconhecerem uma realidade da qual, na maioria das vezes, somente ouvem falar.


A transformação da favela como atração para estrangeiros não é nova. Dos morros aos becos, do Rio de Janeiro à São Paulo, a prática do slumming, a de conhecer as áreas pobres da cidade, ocorre desde os tempos vitorianos. O que mudou é que, atualmente, o voyeurismo de estranhos se tornou uma atividade lucrativa para a comunidade.


Muitos defendem que o turismo nas favelas é eficaz para valorizar as iniciativas culturais e desmitificar a noção que muitos possuem sobre as comunidades mais pobres. Outros, inclusive moradores de Paraisópolis, contestam e afirmam que a prática somente seria benéfica se fosse revertida para prover educação aos moradores da favela.


Polêmicas à parte, o tour também conta com uma visita ao projeto Ballet Paraisópolis, que está comemorando 5 anos de existência. A iniciativa atende crianças de 8 a 15 anos e, como todos os outros projetos da região, é necessário que a criança esteja estudando para participar.


O processo seletivo acontece pelo menos uma vez por mês e nele se leva mais em conta a capacidade e talento do candidato, do que sua desenvoltura propriamente dita. Meninos, por mais surpreendente que isto ainda soe, também participam das aulas e das apresentações. Fiama do Nascimento, uma das guias oficiais do tour, revela a história de um garoto que era discriminado por seus colegas por ser um dançarino. Ele, um dia, como conta Fiama “resolveu desafiar o colega para ir até lá e fazer o que ele fazia.” Hoje, os dois garotos participam do programa.


Nova sala de ballet da comunidade.
Iniciativas é o que não faltam em Paraisópolis. Desde o Palherinha, um campo de treinamento de futebol, até programas para assistência jurídica e aulas de varejo, a comunidade está decidida a não deixar que os pré-conceitos do exterior a defina.


Tratado como paraíso pelos estrangeiros que a visitam, para Paraisópolis, esse conceito do turismo não é nova. Sabáh Aoun, professora de turismo da USP, explica que a noção paradisíaca é comercializada não por uma de “estado perfeito e harmonioso, mas sim o jardim das delícias, feitos na medida e ao gosto de qualquer pessoa disposta a aventurar-se, a romper com seu cotidiano.” Esse um dos atrativos que perpassam pela casa feita de garrafas pets do Antenor Clodoaldo e é a mesma retratada nas telinhas através das famosas novelas da rede de TV da Globo.   


Entretanto, fica nítido que muitos dos projetos precisam do apoio, tanto público quanto privado, para saírem do papel e crescerem. De uma pequena sala na Sede da União dos Moradores, o Ballet de Paraisópolis ganhou um prédio de dois andares com mais espaço para as aulas e para a crescente turma de meninas e meninos da comunidade.


Mas, nem sempre esse apoio ocorre, como no caso de Berbela, que tinha planos de passar a sua arte para frente. Ele visa ensinar as crianças de Paraisópolis a criar as suas próprias obras, na que seria chamada a Oficina do Berbela. O problema, porém, é a falta de espaço. O local escolhido para o projeto foi negado pela prefeitura e, com essa decepção, Berbela pensa até em voltar para Pernambuco, onde nasceu. Mas, enquanto não se decide, vai continuar fazendo sua arte ou, melhor, "sua terapia", como ele se refere à prática.


E arte-terapia é o que Paraisópolis tem de melhor a oferecer.



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