A palavra ficção e a expressão válvula de escape são
íntimas a ponto de uma depender da outra para existir. Ambas têm sido usadas, em
conjunto, para descrever o fascínio do ser humano pelo inusitado. Mas eis que
surge a dúvida: seria a fantasia capaz de se libertar totalmente da
realidade?Seria a ilusão capaz de nos fornecer insights sobre a vida tão
verdadeiros quanto uma obra de não-ficção?
Em meio
a essas questões, surgem aqueles que caminham entre esses dois mundos. Criados
pela literatura, adotados pelo cinema, os vampiros oscilam entre o humano e o
fantástico. Seus hábitos fantasiosos e por vezes repugnantes colidem
diretamente com o lado mais escuro da humanidade. Através deles, vemos o que
não queremos ver, nos confrontamos com os sentimentos mais sórdidos de nossa
espécie.
Seguindo
essa linha de raciocínio, para melhor entendermos a complexidade desse
personagem, temos de, antes de tudo, voltar a sua origem. A primeira aparição
dos mortos-vivos na literatura teria sido ainda no século XIX, no livro The Vampire, de John Polidori –
embora histórias sobre vampiros povoassem o imaginário mundial desde tempos
imemoriáveis. Na época, a Revolução Industrial imperava absoluta. O homem
parecia ser, enfim, capaz de controlar a natureza, atingindo um nível na escala
evolutiva aparentemente impossível de ser superado. Some-se a isso a Era Vitoriana,
marcada pelo puritanismo e pela repressão dos desejos.
Eis que
surge um ser subversivo, incapaz de controlar seus instintos mais primitivos. Uma
criatura arcaica, distante do ideal de homem moderno do século XIX, mas que, mesmo
assim, conhece a fórmula para a vida eterna. Indo contra todas as correntes de
pensamento da época, o vampiro apresenta-se como aquilo que todos desejamos ser,
mas que tentamos negar em função do nosso superego altamente influenciado por
convenções sociais.
Ainda
nos dias de hoje, o embate entre as capacidades humanas e o universo sedutor do
vampiro continua imperando.De um lado,temos as novas tecnologias,trazendo
promessas de liberdade.Mas essa mesma liberdade passa a ser limitada a partir
do momento em que somos bombardeados de informações,propagandas que tentam
confinar o homem a um determinado padrão de conduta.Assim como no século XIX,
vivemos uma fase de repressão das vivências,ainda que de forma mais velada.Como
se o ser humano fosse capaz de controlar a natureza,mas acabasse caindo na
contradição de não poder controlar a própria vida.
Por
outro lado, caso nosso livre arbítrio nos leve a buscar uma vida que renuncie essas
imposições modernas, corremos o risco de cairmos em uma condição vampiresca. Nesse
caso,ao mesmo em tempo em que os limites da moral tornam-se obsoletos, corremos
o risco de nos deparar com a perda de nossa própria energia vital.Pois,assim
como os vampiros sugam a vida que existe dentro de suas presas,seria o homem
capaz de viver sem as regras da sociedade sem se autodestruir?
Os
vampiros são, portanto, manifestações ficcionais que usam a realidade como base
para a sua execução. Através de símbolos, a arte tenta explicar a vida, seja na
triunfante Belle Epoque ou nos dias de hoje. Assim como os mortos-vivos, nada
consegue se manter vivo por tanto tempo quanto a arte de contar histórias.
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